Fazer contas à vida: pensar e agir

Espaço Ciência

Fazer contas à vida: pensar e agir

No ano comemorativo da matemática no planeta Terra, os visitantes do Espaço da Ciência vão ser desafiados a ter uma visão diferente da disciplina, numa perspectiva de transformação social e de inserção da matemática nos diversos planos da criação artística. Um desafio aliciante, como se percebe do que deixaram antever, em conversa com o Avante!, Alice Figueira, Anabela Silva, Augusto Flor, Aurora Bargado e Sílvia Silva.

Sílvia Silva, uma das dinamizadoras desta zona da Festa, disse ao Avante! que «embora se trate de Matemática, não podemos deixar de a relacionar com muitas áreas, sendo a história importantíssima para entendermos a matemática nos dias de hoje». Uma «grande parte do que hoje se chama matemática provém de ideias muito antigas, de há milhares de anos», por isso, o Espaço da Ciência começa por proporcionar aos visitantes uma abordagem histórica à disciplina.

O enquadramento histórico será dividido em quatro grandes fases, referentes a períodos diferentes, desde as civilizações mais antigas, como as dos egípcios e a dos gregos, passando pela Idade Média e pelo Renascimento, até à actualidade, com as matemáticas modernas. Aqui, poder-se-à perceber que «todos somos matemáticos no dia-a-dia» e «como é que as pessoas, desde há milhares de anos, foram explorando a matemática», seja ela aplicada nas práticas agrícolas ou para servir de orientação em civilizações antigas, ou seja ela utilizada nos dias de hoje ao, por exemplo, cozinhar-se uma refeição.

Neste espaço, fruto da importante colaboração da Associação Ludus e do Circo da Matemática, é possível encontrar as personalidades que mais se destacaram no campo da matemática ao longo dos tempos, através de pequenas exposições, bem como diversos instrumentos e formas de cálculo utilizados por diferentes povos em diversos períodos históricos.

A matemática e os matemáticos de Portugal também têm lugar marcado no Espaço da Ciência. Pedro Nunes e o seu contributo para o desenvolvimento da navegação teórica e da cartografia, bem como a vida e obra de Bento de Jesus Caraça, um matemático resistente antifascista e militante do PCP, estarão em destaque nesta exposição.

«A matemática ortodoxa reprime a matemática de grupos»

A evolução sofrida pela matemática ao longo dos anos também será analisada, bem como a forma como ela se desenvolveu em diferentes contextos, originando, por vezes, diferentes matemáticas.

É neste domínio que Anabela Silva introduz o conceito de etnomatemática: uma crítica ao ensino tradicional da matemática ortodoxa, que se opõe à ideia de universalidade desta. «Uribatán d'Ambrosio é considerado o pioneiro da etnomatemática e ele considera que a disciplina denominada matemática é, na verdade, uma etnomatemática que nasceu e se desenvolveu na Europa, tendo recebido importantes contribuições das civilizações do oriente e de África, chegando à forma actual nos séculos XVI e XVII. A partir de então, essa forma estruturada da matemática foi imposta, pelo que d'Ambrosio considera que a matemática ortodoxa reprime a matemática de grupos», esclarece. Segundo Anabela Silva, os métodos utilizados pelos construtores de barcos, das costureiras ou até mesmo o exemplo do «Japão, quando esteve fechado ao exterior, em que a matemática se desenvolveu de forma diferente», são provas de que a matemática não é universal.

Desconstruir os números

O quarto módulo é inteiramente dedicado a Portugal onde, nas palavras de Augusto Flor tudo será tratado matematicamente, através do uso da estatística. Os visitantes poderão consultar os «números de Abril», que servirá, por exemplo, «para nós percebermos qual era a estatura média dos portugueses antes e depois do 25 de Abril, entre outros indicadores do desenvolvimento humano», refere. Terão igualmente oportunidade, diz, para «desmistificar os grandes números de que hoje se fala: o que é o Produto Interno Bruto? o que é o Volume Anual de Negócios?, e o Valor Acrescentado Bruto? São siglas que aparecem muito nas nossas vidas e tudo isto é representado por números, alguns deles quase infinitos». Haverá ainda espaço para verificar os números na política, principalmente em questões relacionadas com os métodos matemáticos utilizados para a eleição de deputados, por exemplo, que é importante conhecer.

A arte da matemática nas artes criativas

Alice Figueira, por seu turno, revela que é possível encontrar a presença da matemática em diversos campos da criação artística, citando como exemplos «as pinturas de Amadeu de Souza-Cardoso, a “Chuva Oblíqua” de Fernando Pessoa, para além de muitos outros, o mesmo sucedendo na escultura e noutras formas de arte». A matemática, acrescenta, também está ainda presente na música, por exemplo, uma vez que esta «é uma sucessão de sons em tempos certos».

Aurora Garboso é a responsável por mostrar a matemática nas artes plásticas. Para o efeito, elaborou duas esculturas, um homem e uma mulher com mais de dois metros de altura e feitas com materiais reciclados (chapas de offset, neste caso), que estarão em exposição no Espaço Ciência. «Baseei-me em Leonardo da Vinci, numa frase em que ele disse que “o pássaro é um instrumento que opera segundo leis matemáticas, instrumento esse que o homem tem capacidade de produzir com todos os seus movimentos”. Pegando nesta frase, vou fazer o homem-pássaro e a sua companheira, porque o ser humano também tem a ver com a matemática, uma vez que um mais um dá sempre dois ou três, dá um aumento demográfico», refere.

Experiências para os mais novos

Em ano de resultados desastrosos nos exames de matemática, as crianças e os mais jovens não são esquecidos neste espaço. Sílvia Silva afirma que além «daquilo que [os mais jovens] levam no intelecto, também vamos ter uma grande componente prática na exposição, com diversas experiências alusivas à matemática, onde poderão levar pequenas coisas que eles poderão construir» naquele espaço, como quadrantes, balanças e ábacos. «Vai ser uma exposição em que há mais interacção com o público do que é costume, sem ser apenas a observação das experiências», afirma.

Além das experiências permanentes e dos debates que ocorrerão durante os três dias da Festa do Avante!, haverá ainda pequenos espectáculos surpresa que se enquadram no Circo da Matemática e um espaço dedicado ao centenário do nascimento de Álvaro Cunhal, onde estará patente o que o revolucionário entendia ser a ciência e as teorias científicas.

A alternativa em debate

Quando questionado sobre a importância da matemática para o presente e para o futuro do País, Augusto Flor é peremptório: «Quando se tenta fazer crer que há um pensamento que é dominante, que quase se transforma em pensamento único, e isso também acontece na matemática, cria-se a tal ideia de universalidade. O que aqui vamos fazer é demonstrar que a matemática tradicional é apenas uma parte do que existe no campo da matemática, logo, demonstrar que também há outras formas e alternativas a uma determinada linha de pensamento que alguns querem que seja única. Esta é, portanto, uma exposição que visa abrir os horizontes às pessoas, de forma a ir transformando as coisas e a não aceitar essas coisas tal como elas são».

Numa nota final, Augusto Flor faz questão de afirmar que «as nossas exposições marcam um pouco a diferença relativamente a outras exposições que abordam os mesmos temas», até pela «forma como os abordamos. Fazemo-lo com rigor científico, obviamente, mas temos mais duas preocupações: primeiro, que os temas cheguem ao povo e que sejam o mais claros e acessíveis possível; e segundo, que tenha uma perspectiva de transformação social, o que muitas vezes não acontece noutras exposições», já que «promovem a manutenção do status quo, ou valorizam mesmo o próprio sistema capitalista em que vivemos».

Números na política, números de Portugal, números no ambiente, números do Espaço Ciência e até números da Festa do Avante!, tudo será analisado matematicamente neste espaço, que promete ser divertido, interessante e enriquecedor.

Notícia jornal «Avante!», Nº 2070 de 1 de Agosto 2013