Um palco aberto para a vida

Avanteatro evoca Álvaro Cunhal e Joaquim Benite

Um palco aberto para a vida

O Avanteatro, que integra na sua programação as comemorações do centenário do nascimento de Álvaro Cunhal – com duas apresentações do espectáculo da Companhia de Teatro de Almada, inspirado no seu julgamento «Um dia os réus serão vocês» – homenageia o encenador Joaquim Benite, fundador e director da Companhia e um dos mais prestigiados criadores portugueses.

Ambas as evocações estão ligadas, desde logo porque a ideia original do espectáculo sobre a defesa de Álvaro Cunhal no Tribunal da Boa-Hora, em Maio de 1950, partiu de Joaquim Benite, que não viveria o suficiente para trabalhar as suas ideias com actores e técnicos nem tão-pouco para assistir à estreia. A dramaturgia e encenação de «Um dia os réus serão vocês: o julgamento de Álvaro Cunhal» acabaria por ficar a cargo de Rodrigo Francisco (que agora dirige a Companhia de Teatro de Almada) e foi um sucesso logo na estreia: as quatro apresentações no Teatro Municipal Joaquim Benite tiveram casa cheia, tal como sucedeu em muitas das outras salas por onde passou o espectáculo, de Norte a Sul do País. Na Festa, «Um dia os réus serão vocês» será apresentado na sexta-feira às 21 horas, na abertura da programação deste ano do Avanteatro, e no sábado, às 20h30.

A evocação de Álvaro Cunhal não se fica por aqui: domingo, às 16h30, no bar do Avanteatro, é apresentada a produção do Teatro Fórum de Moura e do Teatro Extremo, «Os Barrigas e os Magriços», adaptação do conto infantil do histórico dirigente comunista. A presente versão cénica evolui em dois discursos complementares: o discurso narrado e o discurso visual através da manipulação de imagens, formas e objectos. Juntos, fazem a ponte entre o passado, o presente e o futuro.

Como revelou ao Avante! Manuel Mendonça, da comissão do Avanteatro, há um outro espectáculo que se pode integrar nas comemorações do centenário, muito embora não seja nem da autoria nem dedicado a Álvaro Cunhal: trata-se de «Coragem hoje, abraços amanhã», criado e interpretado por Joana Brandão, que dramatiza testemunhos, cartas e outras memórias de mulheres que estiveram presas e que sofreram a tortura do sono e da estátua. Criado em parceria com o Avanteatro, este espectáculo promete emocionar e surpreender, ao abordar uma faceta tão violenta como heróica e emocionante da resistência antifascista em Portugal.

Nome incontornável da cultura

Mas a homenagem principal do Avanteatro vai para o autor de algumas das mais notáveis criações teatrais que passaram pela Festa do Avante!, Joaquim Benite, falecido no final do ano passado. Depois de, ano após ano, as criações de Joaquim Benite terem preenchido a programação do Avanteatro, é a vez do criador estar em destaque: no sábado, às 15h30, há um debate sobre a sua vida e, obra e no domingo, à mesma hora, será exibido o documentário «Não basta dizer “Não”, a última encenação de Joaquim Benite», da autoria de Catarina Neves. Neste filme, acompanha-se a sua última encenação, «O Timão de Atenas», de Shakespeare (com Luís Vicente, que encarna também Álvaro Cunhal em «Um dia os réus serão vocês»), que estreou já após o desaparecimento físico do encenador.

Mais do que um filme sobre a criação teatral, é o testemunho da última batalha de um homem que dedicou a vida à arte na sua mais plena expressão, sempre ligada ao homem, ao seu sofrimento, à sua luta. Manuel Mendonça, aliás, lembra Joaquim Benite como alguém que colocava sempre nas encenações a sua visão do mundo e do homem. Também a exposição que estará patente no bar do Avanteatro ser-lhe-á dedicada.

Sendo normal, no Avanteatro, evocar figuras, entretanto desaparecidas, que se destacaram no mundo do teatro – como criadores, actores ou encenadores. Manuel Mendonça considera esta uma homenagem diferente, pois Joaquim Benite não só foi o encenador de algumas das mais notáveis peças que ao longo dos anos se apresentaram no Avanteatro, como foi igualmente um activo construtor deste espaço, com o qual colaborou de perto durante muito tempo.

Programa rico e diversificado

Apesar da importância destas duas evocações, o programa do Avanteatro tem outros motivos de interesse. Manuel Mendonça destaca, desde logo, «Vontade de ter vontade», da coreógrafa e bailaria almadense Cláudia Dias: não fosse este ano o da comemoração do centenário do nascimento de Álvaro Cunhal e «seria este o espectáculo que abriria a programação» do espaço. Nesta coreografia, nomeada para um prémio pela Sociedade Portuguesa de Autores, reflecte-se sobre o estado actual do País, a sua condição colonizada e a emigração. É um autêntico «manifesto contra a inevitabilidade».

Da programação do Avanteatro constam ainda Julieta, do Teatro dos Aloés; Adalberto Silva Silva – um espectáculo de realidade, interpretado por Ivo Alexandre a partir do texto de Jacinto Lucas Pires; Um dia de raiva, do Grupo Gentes; a peça infantil Os Gatos, da Companhia de Teatro de Almada; Constantino o contador de fábulas, teatro de marionetas do grupo Valdevinos; Contos da Mata dos Medos, pela Associação Cultural Mundos do Espectáculo; Miss E@sy, A Matrafonia Total, da Companhia Marimbondo. A fechar a programação dos três dias estará, como sempre, a música, este ano com Nuno Tavares Trio, Mano Quarteto e Voodoo Marmalade.

Raízes fundas

O facto da grande maioria dos projectos que serão apresentados este ano no Avanteatro terem origem em Almada é, em si mesmo, uma homenagem a Joaquim Benite. Quem o diz é Manuel Mendonça, que realça o papel do fundador do Grupo de Teatro de Campolide e da Companhia de Teatro de Almada na transformação do concelho da Margem Sul do Tejo numa referência nacional (e não só) do teatro.

Para o membro da comissão do Avanteatro, não é um acaso que nasçam em Almada numerosos e valiosos projectos teatrais e musicais: há uma vivência cultural rara, que cria públicos e revela criadores, que não é alheia à actividade da Companhia de Teatro de Almada e à realizaão do Festival Internacional de Teatro de Almada – e, por acréscimo, à figura de Joaquim Benite.

Mas há outro factor que, juntamente com este, ajuda a explicar tamanha actividade cultural, destaca Manuel Mendonça: o apoio permanente e imprescindível das autarquias, de maioria CDU, sem as quais muitos destes projectos não teriam condições para existir. Basta recordar o que sucedeu ao projecto Amascultura e ao Cendrev, quando o PS substituiu a CDU nos municípios da Margem Norte do Tejo e no concelho de Évora. A extinção de grandes companhias teatrais é, aliás, uma tendência verificada à escala europeia, salienta Manuel Mendonça, acrescentando que, para o poder actualmente existente na Europa, as artes, e especialmente o teatro, são um alvo a abater. No Avanteatro é também de resistência que se trata.

Notícia jornal «Avante!», Nº 2072 de 14 de Agosto 2013

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