Um certo modo de fazer teatro

Avanteatro

Um certo modo de fazer teatro

À primeira vista, a relação entre a reforma agrária e a produção cultural não é evidente.

À primeira vista, nem mesmo o facto de a heróica ocupação de terras no Alentejo e Ribatejo se ter iniciado em 1975 (há 40 anos portanto), justificaria que a efeméride fosse assinalada no Avanteatro.

Porém, esta impressão superficial desvaneceu-se logo com a primeira intervenção no debate intitulado precisamente «A Cultura e a Reforma Agrária», realizado no sábado à tarde.

Como explicou Luís Varela, um dos fundadores do Centro Cultural de Évora (depois designado Cendrev), a revolução de Abril criou as condições para a descentralização teatral.

No Alentejo, isso significou levar o teatro junto de populações que nunca tinham assistido a espectáculos de teatro.

Com a instalação da companhia no Teatro Garcia de Resende, em Évora, o público em geral e, naturalmente, os trabalhadores da Reforma Agrária, acediam não só a uma das mais belas salas do País, ao estilo italiano, como principalmente a peças de grande qualidade, desde consagrados clássicos portugueses e estrangeiros aos mais destacados autores contemporâneos.

Mas o maior trabalho dos artistas de teatro realizava-se fora de portas, no chamado «circuito de estrado», digressões pelas freguesias rurais e Unidades Colectivas de Produção (UCP).

Dezenas de peças foram assim representadas nos mais diversos espaços, num simples estrado, com adereços mínimos. Os espectáculos terminavam frequentemente em animados debates com a assistência.

Dir-se-á, com justiça, que algo de semelhante aconteceu noutras regiões do País.

Efectivamente, a par da conquista de direitos políticos, económicos e sociais, o 25 de Abril desencadeou um amplo movimento de democratização cultural, uma explosão de cultura proletária que deu origem a numerosas estruturas de produção artística, muitas delas destroçadas pela voragem da contra-revolução, outras enfrentando hoje as mais sérias dificuldades.

Todavia, foi na Reforma Agrária, «a mais bela conquista da revolução», nas palavras de Álvaro Cunhal, que os trabalhadores levaram mais longe a sua iniciativa revolucionária, concretizando a passagem da propriedade dos meios de produção dos exploradores para os explorados e, assim, alterando radicalmente as relações de produção.

Manuel Vicente, à época presidente do Sindicato dos Trabalhadores Agrícolas do Distrito de Évora, lembrou que a Reforma Agrária garantiu não só trabalho e salários, mas também proporcionou o acesso à educação, saúde, cultura. Os trabalhadores perceberam que tinham de criar os seus próprios equipamentos, e criaram-nos, incluindo no domínio da cultura.

Como assinalou no debate Jorge Pires, membro da Comissão Política do PCP, já Marx, em «A Ideologia Alemã», havia observado que a classe que dispõe dos meios de produção, dispõe também dos meios para produzir as ideias dominantes.

Assim, a destruição da Reforma Agrária, iniciada logo em 1977 com a aprovação da famigerada «Lei Barreto», foi também, como disse Luís Varela, o fim de «um certo modo de fazer teatro».

Intervenção e resistência

Passando pela agradável esplanada e entrando no Avanteatro, um amplo espaço com mesas e cadeiras acolhia visitante. Ao alto, uma grande fotografia homenageava Fernanda Montemor e Mário Jacques, duas destacadas figuras do teatro, falecidas neste ano.

A toda a largura percorria-se uma exposição retrospectiva das encenações de O Bando, uma das mais antigas cooperativas culturais, fundada em 1974, que mantém vivo o projecto de descentralização.

Como declarou ao Avante! Manuel Mendonça, da organização do Avanteatro, o destaque dado a O Bando na programação deste ano foi ao mesmo tempo uma expressão de solidariedade com a companhia, que atravessa imensas dificuldades para sobreviver, e uma denúncia da actual política cultural que tem asfixiado os criadores, em particular, na área do teatro.

O Bando apresentou três espectáculos, dois dos quais inspirados em obras de Virgílio Ferreira. «Em Nome da Terra» foi representado nas noites de sexta-feira e sábado, no exterior, enquanto «Senhor Imaginário» subiu ao palco a meio da tarde de sábado.

Ao grupo coube ainda fechar a programação do palco com a divertida peça «D. Afonso Henriques», estreada em Novembro de 1982.

Mas são muitos os espectáculos que se destacaram ao longo dos três dias. «O Mandarim», pela Companhia de Teatro de Almada, abriu a programação do palco, recuperando a célebre novela Eça de Queiroz, numa encenação de Teresa Gafeira.

Do Porto, o Teatroensaio trouxe «Transumância», com encenação de Inês Leite e dramaturgia de Pedro Estorninho, a partir do livro de poesia de Francisco Duarte Mangas.

A peça subiu ao palco por volta da meia-noite, mas a hora tardia não constituiu obstáculo para perto de duas centenas de pessoas que assistiram ao espectáculo, que recorda as deslocações sazonais de homens e rebanhos em busca de pastagens no interior do País.

Na tarde de sábado, pudemos ver «O Homúnculo», com encenação de José Maria Dias e dramaturgia de Armando Nascimento Rosa, a partir do texto homónimo de Natália Correia.

«O Homúnculo (tragédia jocosa)» foi publicado em 1965 e de imediato apreendido pela PIDE. Talvez caído no esquecimento, só passados 50 anos este libelo contra o regime ditatorial, onde um homem «impõe a sua vontade e governa acima de todos os outros», foi finalmente levado à cena pelo Teatro Estúdio Fontenova de Setúbal.

A noite ficou marcada por dois importantes espectáculos: «Reforma Agrária. 40 anos», por Três vozes do Teatro e, a encerrar, «Nossa Senhora da Açoteia», pela Companhia de Teatro do Algarve.

O primeiro surpreendeu pelo estilo directo de representação, quase um diálogo com o público. Três actores, Álvaro Corte-Real, Rosário Gonzaga e Victor Zambujo, partilharam em cena as suas memórias de jovens artistas no Centro Cultural de Évora nos anos da Reforma Agrária. Citando documentos autênticos (entrevistas, discursos e textos programáticos de partidos políticos), demonstraram durante hora e meia como a Reforma Agrária permitiu aumentar a produção, criar postos de trabalho e operar uma profunda transformação a todos os níveis no Alentejo.

No final, ovacionados de pé por uma numerosa assistência, Manuel Vicente, dirigente sindical naquele período, um dos muitos nomes citados na peça, subiu ao palco para agradecer aos actores pelo «grande trabalho de esclarecimento». E também ele recebeu uma prolongada salva de palmas.

A noite prosseguiu com a poderosa interpretação de Luís Vicente do monólogo «Nossa Senhora da Açoteia», um texto premiado de Luís Campião que nos fala do tempo em que no Algarve os homens viviam do mar, da faina da pesca e da indústria de conserva de peixe.

O domingo reservava-nos o documentário de Zelito Viana, «Augusto Boal e o Teatro do Oprimido», no qual se mostra como o teatro pode constituir um instrumento de intervenção e transformação social, e uma temível arma contra todos os tipos de opressão.

Seguiu-se o espectáculo «Pasado Perfecto», de Horman Poster, vindo do País Basco, que recordou com imagens e palavras acontecimentos marcantes dos anos 70.

A diversificada oferta incluiu ainda, nas manhãs de sábado e domingo, espectáculos para a infância. Desta vez não houve peças de teatro infantil, mas sim de dança, com «Re-ligações, pela Companhia de Companhia de Dança de Almada, e histórias com cantigas tradicionais, em «Taleguinho», contadas e cantadas por Catarina Moura e Luís Pedro Madeira, que embalaram uma assistência da mais tenra idade.

No bar passou muita música: «O Barco Azul», de André Santos MOB Ensemble, as refinadas sonoridades portuguesas dos Seiva, o jazz dos Kharga ou as gaitas-de-fole dos Roncos do Diabo.

No debate «Cultura e Reforma Agrária», moderado por Cláudia Dias, da organização do Avanteatro, participaram Manuel Vicente, antigo dirigente sindical dos trabalhadores agrícolas do distrito de Évora, Luís Varela, encenador e fundador do CENDREV, e Jorge Pires, membro da Comissão Política do PCP.

Em jornal «Avante!»