Palavras sem barreiras

Palco 25 de Abril

Palavras sem barreiras

No sábado, «A Carvalhesa», portadora de uma energia inexplicável, libertadora dos sentimentos mais puros, chamou para o Palco 25 de Abril muitos milhares de pessoas. Foram momentos inesquecíveis, que se repetiram por diversas vezes.

A primeira actuação coube ao projecto Paus –rock experimental, electrónico –, que apresentou um som sofisticado, com impulsos criados pelo instinto. Apresentaram «Clarão», o seu último álbum. A força dos instrumentos – bateria, baixo e teclados – fundiu-se com as vozes, para criar algo belo. Uma «transe» inovadora.

Seguiu-se os Bubblegum Screw, formaçãolondrina – com a participação de um músico português –que contagiou o público com a irreverência e o poder do eterno punk, ao som de temas dos álbuns «Screwphoria!» e «Filthy! Rich! Lolitas!». «Play Some Fucking Stooges» foi disso um bom exemplo.

Uma hora depois subiram ao palco os Viralata, banda de rock conhecida por fazer uma forte crítica social. O concerto iniciou-se com o soundtrack do filme «Academia de Polícia». «Burguês», «Mãos ao alto, este País é um assalto», «Zé ninguém», «Contagem decrescente», «Famel», «Homem que é homem», uma mensagem contra a violência doméstica, e «Estamos juntos» preencheram a actuação.

Os HMB – com muito soul, rhythm and blues, gospel e hip-hop – arrasaram com a sua energia contagiante. A esta formação juntou-se Sir Scratch, num concerto que trouxe ainda mais alegria ao espaço e que terminou a recordar Black Company. Pelo meio passaram os originais «Dia D» e «Sente».

Momento alto foi o concerto da Brigada Victor Jara, uma das melhores formações de música tradicional portuguesa, a que se juntou, mais adiante o grupo Segue-me à Capela, constituído por sete vozes femininas. Em conjunto cantaram temas que acompanharam, durante 40 anos, a Brigada e que fazem parte da nossa história. Começaram com «Arriba Monte» e prosseguiram com «Moda da Zamburra», «Mi morena», «Cantiga bailada», «Raparigas mondadeiras», «Cana verde» e «Marião», entre outras músicas.

«Daqui em cima vê-se o País todo», afirmou Manuel Pires da Rocha. Terminou referindo que «Não há sítio mais belo para comemorar 40 anos de carreira do que a Festa. Confiança até ao dia 4 de Outubro.»

Com a noite já instalada, Marta Ren prosseguiu com temas alegres, a remeter para o soul e funk dos anos 60.

A boa música nacional voltou com Fausto Bordalo Pinheiro, que, celebrando a Diáspora Portuguesa, revisitou parte dos seus temas, conhecidos e entoados por todos, como aconteceu com «O barco vai de saída», «A voar por cima das águas», «Guerra é a guerra» e «Por altas serras e montanhas».

Vindos da Catalunha, os Txarango proporcionaram momentos exuberantes, numa mistura de reggae, rumba e ska. Numa volta ao mundo musical, falaram de amor e de «Esperança». «Corazón viajero», «Músic de carrer» e «La vuelta al mundo» fizeram bater mais forte os corações.

Doze anos depois, a Banda Bassotti regressou à Festa, com o melhor do ska-punk italiano. Temas como «Rum & polvere da sparo», «Revolution rock», «Carabina 30 – 30», «La Banda del Cimitero», «El Leon Santillan», «Figli della stessa rabbia», «Stalingrado», «Poliouchka polie», «Mockba 993» e «Bella ciao» incendiaram o público, numa celebração da liberdade.

O dia terminou com Expensive Soul. Começaram com «Tem calma contigo» e continuaram com «13 mulheres», «Cupido», «Que saudade», «Dou-te nada», «Eu e tu, o que?», «1.ª fila», «Electrificado», «Como eu venho» e «Hoje é dia mais feliz da minha vida».

No final, nos temas «O amor é mágico» e «Eu não sei», fizeram-se acompanhar pelos Tocá Rufar epelos Mineiros de Aljustrel. Um concerto memorável, onde não faltaram bolas gigantes a saltitar pelo público, num movimento surpreendente.

Sons irreverentes

A viagem pelo mundo da música voltou a ter lugar no domingo, iniciando-se com Os Prana. Um som simples, descontraído e melódico. «A valsa do cupido, esse sacana», «Raiva», «A porta» e «Sapatos de pedra» foram aclamados. Fizeram ainda uma pequena homenagem a Adriano Correia de Oliveira, interpretando «Trova do vento que passa».

O rock, puro e duro, cantado em português, continuou com os Gazua, que «incendiaram» o recinto. «Queremos a música de volta» e «Sobrenatural» puseram em êxtase o público, numa tempestade de emoções.

Dealema – com 4 rappers e um DJ – trouxe uma forte componente musical direccionada para o hip-hop, mas também para outros estilos, como o soul e o rap. Aqui a palavra foi a arma, como se comprovou em «Bairro», «Brilhantes diamantes», «O olho que tudo vê», «Família malícia» e «Portugal surreal». Despediram-se com «Nada dura para sempre».

Os Cais do Sodré Funk Connection voltaram ao Avante!. Neste espectáculo, surpreendente, mostrou-se o poder do funk, do soul, do blues e do jazz. Entre outros temas – dedicados aos construtores da Festa, «a mais bonita do mundo», segundo Fernando Nobre –, «Offebeat», «Summer days of fun» e «Just having a party» soltaram os movimentos dos corpos. No final, os músicos curvaram-se perante o público.

Antes do comício, o Grupo Coral e Etnográfico da Casa do Povo de Serpa fez uma homenagem à Reforma Agrária e ao Cante Alentejano, cantando «Alentejo – terra sagrada do pão» e «Grândola vila morena». Cândido Mota leu o poema «Todo o Alentejo», de José Gomes Ferreira. Momentos que fizeram arrepiar pela sua beleza e grandiosidade.

Depois do comício, subiram ao palco os exuberantes Linda Martini. Durante a sua actuação, muito aguardada, desfilaram temas que fazem parte da sua identidade. Entusiasmaram o público com «Dá-me a tua melhor faca», «Amor combate», «Juventude sónica» e «Cem metros sereia».

Os The Last Internationale, vindos de Nova Iorque, continuaram com o melhor do rock. Delila Paz, com uma voz portentosa, mostrou uma forte presença em palco, assim como Edgey Pires (guitarra) e Brad Wilk (bateria). Ultrapassaram todas as barreiras através de «Killing fields», «Life, liberty, and the persuit of indian blud», «Fire», «Hey hey, My my», «We will reign» e «Wanted mam». Músicas com conteúdo político para denunciar o racismo e condenar o capitalismo. Bestialmente bom.

Os Xutos & Pontapés encerraram a programação do palco. Uma vez mais, um concerto único, com novos e «velhos» temas, como «Salve-se quem puder», «De madrugada», «Contentores» e «Não sou o único». Na maior enchente dos três dias da Festa, tocaram ainda «Homem do leme», «Ligações directas», «Ai a minha vida», «Dia de S. receber», «Chuva dissolvente», «Há 10 000 mil anos atrás», «Maria», «A minha casinha» e «Ai se ele cai». Músicas que já não precisam de apresentações e que todos, de várias gerações, gostam.

A grande música que foi ao cinema

«Aqui é quando entram os maus!», comentava um jovem para a sua parceira, ambos ouvintes atentos de um trecho da banda sonora de Guerra das Estrelas, composta por John Williams, que estava a ser (magnificamente) interpretado pela Orquestra Sinfonietta de Lisboa na abertura da Festa do Avante! 2015, na Quinta da Atalaia, Seixal.

Sebastião da Gama, poeta da Arrábida perto do lugar onde a Festa se faz, disse que «pelo sonho é que vamos». Na sexta-feira passada muitos terão dito «pelo filme é que vamos», partindo do(s) filme(s) em direcção à música sinfónica com o espanto de gostar de ouvi-la, vejam lá, afinal isto é porreiro, gostamos.

Entre os milhares de espectadores do concerto, de seu nome «A Festa Vai ao Cinema», ouvimos Domingos David, espectador sénior, a dizer-nos que estavamos perante «uma experiência muito rica e pedagógica», ora bem, estava tudo dito perante o facto de serem cativados para a grande música pessoas dela arredadas antes e a ficarem com outra ideia depois. E a acrescentar que «estes músicos devem sentir uma grande emoção quando vêem que têm aqui muito mais público do que nos outros concertos que fazem».

Pois sim senhor, é verdade. Richard, percussionista com oito presenças na Festa, cinco delas com a Sinfonietta, a dizer-nos «gosto muito. Adoro o ambiente»; André Santos, guitarrista da orquestra, à fala connosco: «é uma boa festa. Aqui o público está mais predisposto. É muito gratificante»; Vasco Pearce de Azevedo, maestro da Sinfonietta, repetindo que «é graticante» e acrescentando que «a Festa é magnífica!»

De outras músicas são Edmundo Silva, baixista de muitas bandas, desde os pré históricos «Conjunto Mistério» e os «Sheiks» e que ainda mexe e bem, e Inês Menezes, vocalista em concertos rock e punk. Ambos encantados com o concerto, na altura brilhava António Rosado no piano, o Edmundo, leninista, a dizer que «é também o povo a aprender. E o povo gosta de aprender. Sempre!», a Inês a classificar a orquestra («magnífica!») e a olhar em volta, «todas estas pessoas! É emocionante!».

Manuel Jorge Veloso, músico e crítico musical, escreveu neste jornal sobre o evento e antes dele: «música dos grandes mestres de todos os tempos, que o Cinema aproveitou para jogar com as estórias, as imagens, os bonecos, os ruídos ou mesmo outras músicas(...). Música que os grandes compositores de bandas sonoras inventaram». Foram essas músicas, de Richard Strauss, de Wagner, de Saint-Saens, de Maurice Jarre, de Prokofiev, de Berlioz, de Verdi, que os milhares de espectadores ouviram, numa noite fértil com músicos a tocar (e a vestir!) com rigor e a preceito, e uma vasta plateia a aplaudir com entusiasmo convicto.

«Este Wagner é genial», proclamava Cândido Mota depois de ouvir A Cavalgada das Valquírias, que Coppola usou em «Apocalypse Now», logo acrescentando «enquanto compositor, entenda-se!».

Do palco via-se um mar de gente. A música passeava-se por essa imensidão que ignorava a noite fria e se concentrava nas imagens sonoras que a memória filmava para guardar na letra C, de concerto, na pasta dos favoritos.

Quase a acabar, Elmer Bernstein e a sua banda sonora deOs Sete Magníficos. O número peca por defeito. Foram muito mais os «magníficos» da noite, dos intérpretes aos que, escutando, ouviram e, ouvindo, gostaram ou aprenderam a gostar. Muito.